11 novembro 2006

Não há só a dívida do Estado, há um défice social

Manuel Alegre no XV Congresso do PS
11.11.2006



(...)

Em política não contam só os resultados. Contam também as ideias e as convicções. Portugal foi o primeiro país da Europa a abolir a pena de morte. Fiel a esse legado, quero manifestar o meu desconforto em relação à sentença que condenou à morte por enforcamento o ditador Saddam Hussein.

Não é dessa forma que se afirma a superioridade moral da democracia.

Quero finalmente congratular-me com um acontecimento de grande relevância para o mundo e para a humanidade: a vitória dos democratas nas recentes eleições da grande nação americana.

Venho aqui porque esta é a minha casa política e porque, numa hora difícil, os socialistas devem estar juntos. Na sua diversidade, com o seu espírito crítico, na sua tradição pluralista.

Ou, parafraseando o poeta Eugénio de Andrade, “juntos ainda que separados.”

A história do socialismo teve momentos esplendorosos e outros sombrios.

Tenho-me muitas vezes perguntado o que é que, do socialismo, fica na História.

Hoje creio que sei: ficam os ganhos de cidadania.

Fica por exemplo o fantástico e mágico primeiro mês do governo de Léon Blum em 1936: as 8 horas de trabalho, o salário mínimo, a segurança social, as férias pagas, os operários que enchiam os comboios a cantar, pela primeira vez, por verem o mar.

Fica, no caso português, o contributo decisivo do PS então liderado por Mário Soares para uma Constituição onde os direitos políticos são inseparáveis dos direitos sociais.

Fica a criação, pelo nosso camarada António Arnaut, do Serviço Nacional de Saúde.

Fica a criação do Serviço Nacional de Saúde, mas tenho que dizer que não ficarão as taxas moderadoras sobre internamentos e cirurgias.

Fica a Lei da Paridade apresentada pelo PS e aprovada pela AR.

E espero que fique, com a contribuição do Partido Socialista, a vitória do sim no próximo referendo sobre a despenalização do aborto.

Isso não vai acontecer, mas se porventura acontecesse e o não não fosse vinculativo, acho que o Partido Socialista tinha a obrigação moral e histórica de resolver o problema na Assembleia da República para acabar com esta vergonha e com esta hipocrisia.

Fica o poder local democrático que, segundo Antero de Quental, é um dos elementos constitutivos do socialismo português e que, para muitos, foi a primeira escola da cidadania.

Fica o direito à greve, ficam os direitos, liberdades e garantias conquistados pela luta dos trabalhadores e as suas organizações sindicais e políticas.

Porque é bom não esquecer que o socialismo e o movimento sindical nasceram juntos e, por maiores que sejam as divergências e os conflitos, juntos têm de continuar. E juntos terão de mudar e entender-se para responder às novas realidades.

A liberdade sindical é também um ganho de cidadania que em grande parte se deve ao PS e ao grande socialista que foi Francisco Salgado Zenha.

Quando caiu o muro de Berlim, julgou-se que tinha chegado a hora do socialismo democrático.

Mas o que chegou foi o capitalismo total, um modelo único de organização económica sob a sua forma mais radical.

Chegou a globalização, que deveria ser um factor de desenvolvimento e conhecimento, mas foi apropriada, em benefício próprio, pelos grupos mais poderosos entre os países industrializados.

E chegou também, através da conjugação do Pacto de Estabilidade e Crescimento e das Grandes Orientações de Política Económica, uma Constituição económica não escrita, uma Constituição ideológica neoliberal que põe em causa, dentro da própria Europa, o modelo social europeu.

Embora dentro da economia de mercado haja vários modelos e escolhas possíveis, a receita que por toda a parte se pretende impor é uma receita de sentido único: privatizações, liberalização, desregulamentação, flexibilização, desmantelamento dos serviços públicos, tentativa de destruir o modelo social europeu e de uniformizar a nossa economia, a nossa sociedade, a nossa vida.

Seremos capazes de resistir?

Seremos capazes de fazer diferente e de, num quadro de mundialização do sistema, criar uma via nova e talvez pioneira?

Este, é o problema que se coloca aos socialistas portugueses e ao seu governo. Mais do que um problema ideológico, é quase ontológico, porque é o problema de saber se, em certas condições, ainda há lugar para políticas socialistas.

Ou por outras palavras: como é que se podem cumprir as obrigações assumidas perante Bruxelas para reduzir o défice sem pôr em causa os ganhos de cidadania?

Grande e terrível desafio que está colocado ao governo e que está colocado a todos nós. Porque se o governo ganhar, ganhamos todos. Se perder, perdemos todos. As reformas anunciadas não são fáceis.

Mas é o sentido das reformas e o modo como se fazem as reformas que distingue a esquerda da direita.

Nós não somos o Compromisso Portugal, que propõe o despedimento de 200 mil funcionários públicos e exige sacrifícios aos portugueses que os seus membros jamais seriam capazes de fazer.

Nós não somos de direita.

E por isso não é preciso criar um clima negativo contra os funcionários públicos para legitimar a reforma da Administração Pública.

Pelo contrário: a reforma terá de ser feita com os funcionários e não contra eles. O método é importante. E é no método e no estilo que também se deve afirmar a diferença do Partido Socialista.

O mesmo se diga em relação à Educação.

Sou um defensor da Escola Pública e da dignificação da profissão de professor.

Fizeram-se alterações muito importantes na política educativa, como, por exemplo, mudança de paradigma na formação contínua do professor ou melhoria do sucesso dos alunos na Matemática, na Língua Portuguesa, nas Ciências Experimentais.

Mas houve guerrilha a mais.

É tempo de estabilizar e acalmar. Substituir a crispação e o confronto pelo diálogo e a compreensão entre Ministério e os Sindicatos.

Disse e mantenho que se deve estar atento aos sinais da rua.

Eu sou de uma geração que aprendeu a levar com casse-têtes na rua.

Um aparelho pode organizar pequenas manifestações e provocações. Mas as grandes manifestações só acontecem quando as pessoas estão descontentes, zangadas e mesmo desesperadas.

É importante que o governo não se deixe intimidar. Mas compete também ao governo dar às pessoas uma perspectiva e um sentido de esperança e confiança.

José Sócrates, citando Pearson, o antigo Primeiro Ministro sueco, lembrou que “um Estado endividado não é um Estado livre.”

É verdade.

Outro socialista francês afirmou que a esquerda tem de libertar o Estado da dívida.

Também é verdade.

O problema é que não há só a dívida do Estado. Há uma dívida social e um défice social.

A grande questão é saber se se pode libertar o Estado da dívida e, ao mesmo tempo, diminuir o défice social. Ou pelo menos não o agravar.

Os sacrifícios pela consolidação das finanças públicas só valem a pena se tiverem a perspectiva de vencer o défice social e concretizar os direitos sociais inscritos na Constituição.

Vencer o défice para consolidar o Estado social.

Esta é uma hora difícil e eu não consigo fazer o discurso da auto satisfação. Há 2 milhões de portugueses no limiar da pobreza, três milhões a viver em casa sem conforto nem condições e, apesar dos novos 48 mil empregos, cerca de meio milhão de desempregados, muitos outros em trabalho precário, milhares de jovens na incerteza do primeiro emprego, muitas mulheres que continuam a ser discriminadas.

Estes são aqueles que não podem ser esquecidos. Estes são aqueles que precisam do PS, estes são aqueles que são a nossa razão de ser.

Esta é também uma hora que precisa da reafirmação dos valores do PS. E sobretudo evitar a repetição de erros do passado: nem partidarização do governo pelo partido, nem governamentalização do PS pelo governo.

Solidariedade, espírito crítico, autonomia. Porque, camaradas, cedo ou tarde, é próprio da democracia, os governos passam. Mas não o partido. Não o socialismo, como ideia e como inconformismo. Ou, como dizia Antero de Quental, como “um protesto moral contra a injustiça e a desigualdade”.

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