29 novembro 2006

Futebol como a poesia, não se explica, implica

Manuel Alegre ao jornal A BOLA
Entrevista de José Manuel Delgado
29.11.2006



No dia do lançamento de mais um livro, O Futebol e a Vida, Manuel Alegre, 70 anos, “homem de um só parecer” à imagem de Sá de Miranda, partilhou com A BOLA alguns pensamentos sobre o desporto-rei.

O vice-presidente da Assembleia da República, já galardoado com o Prémio Pessoa para uma carreira ímpar nas Letras, mostrou de caneta em punho e bola no pé por que é um dos mais notáveis portugueses da sua geração.

Que refrescante é, volta e meia, ter o privilégio de trocar o mofo das discussões estéreis que marcam negativamente o futebol português por uma lufada de ar fresco, feita de pensamentos sublimes a propósito do beatiful game…

Manuel Alegre, primeira figura das Letras portuguesas, homem de convicções inabaláveis e paixões profundas, aceitou o desafio de A BOLA e respondeu, com o brilho e a inteligência que são a sua imagem de marca, a 15 perguntas sobre futebol, desporto que ama e tão bem interpreta naquilo que tem de mais transcendente.

Alegre invoca Camões para falar de Eusébio, “um dos grandes da Lusofonia”, enquadra a Selecção Nacional na sociedade portuguesa, comenta Camus e vê o Benfica como “corrente afectiva”.

Soberba a definição que sugere para uma finta de Cristiano Ronaldo: “um verso que surge onde menos se espera, ditado por não se sabe quem.”

O futebol é o ópio do povo?
É a festa do povo.

Ou será antes poesia em movimento?
Poesia em acto. Quando há artistas.

É verdade que pode mudar-se de mulher ou de partido, de clube é que nunca?
É verdade. Talvez porque o futebol, como a poesia, não se explica, implica.

O que pensa da angústia do guarda-redes no momento do penalty?
É como a angústia de todos nós perante o mistério da vida. Angústia metafísica.

A antipatia colectiva pelo árbitro é uma fatalidade?
Faz parte da festa.

O que foi para si o golo de Vata?
Uma espécie de milagre, talvez a segunda mão de Deus.

Eusébio é um dos Grandes Portugueses?
É um grande da Lusofonia.

b]Pelé, Eusébio, Maradona, Cruyff, Di Stefano, Puskas, que contributo deram para a felicidade da raça humana?
A de fazerem crer que o impossível pode acontecer. A de serem símbolos da beleza, da magia e das vitórias que uns poucos conseguem para todos partilharem.

Que comentário lhe suscita o facto de Eusébio, negro de Moçambique, ser um ícone de Portugal?
Algo de semelhante ao mais belo poema de amor anti-racista - As Endechas a Barbara Cativa, de Camões. Se há uma cultura portuguesa, ela é isso mesmo: antiracista e universalista.

Comente a seguinte revelação de António Lobo Antunes, em entrevista à Visão, em Janeiro de 2004:"Quando o Benfica jogava, púnhamos os altifalantes virados para a mata e, assim, não havia ataques. Parava a guerra. Faz sentido estarmos zangados com pessoas que são do mesmo clube que nós? O Benfica foi, de facto, o melhor protector da guerra. E nada disto acontecia com os jogos do Porto e do Sporting, coisa que aborrecia o capitão e alguns alferes mais bem nascidos."
Vivi essa experiência e posso confirmá-la. Ela mostra que o Benfica, mais do que um clube de futebol, é um elo de ligação, uma corrente afectiva, com uma dimensão de partilha e fraternidade.

Como define uma finta de Cristiano Ronaldo?
Como um verso que surge quando menos se espera, ditado por não se sabe quem.

A Pátria deve rever-se na Selecção Nacional?
A verdade é que se reviu. Os filhos dos emigrantes, por exemplo. Muitos descobriram-na através da selecção. É um estímulo para descobrir as outras dimensões da Pátria.

«Tudo o que sei sobre moralidade e obrigações, devo-o ao futebol». Esta frase de Albert Camus é um exagero?
À primeira vista parece um exagero. Mas é um facto que Albert Camus sabia muito sobre “ moralidade e obrigações “

Como reage ao desdém de uma certa intelectualidade portuguesa perante o fenómeno do futebol?
Com ironia e uma certa piedade. São aqueles que nunca fizeram uma finta nem marcaram um golo. Os que eram escolhidos para a baliza. Ou nem isso.

A cada um dos nomes, faça corresponder um vulto das artes plásticas, da literatura ou do cinema.

Eusébio – Amália Rodrigues
Luís Figo – O Leopardo ( de Luchino Visconti )
Cristiano Ronaldo – Brad Pitt
Rui Costa – Marcello Mastroianni
Ricardo – Rambo ( Silvester Stalone ).

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