29 novembro 2006

Apresentação de "O futebol e a vida" de Manuel Alegre

FNAC Colombo, Lisboa
[Maria João Avilez, 29.11.2006]

Talvez ele não saiba mas eu por Manuel Alegre deixo-me sempre convocar. Mesmo que me deixe no banco, mesmo que nem sequer me convoque. Há muitos anos que é assim, tantos que os não acho na memória. Aviso desde já que a convocação não começou com a política, nem foi nunca a política que me guiou os passos ou me cimentou o caminho. Ele começou pela poesia – e poderia ser de outra maneira? - e depois foi por aí fora, num circuito que nos unia nos livros que ele escreve e eu leio, nos seus artigos de jornal que por vezes recorto, nos relvados de futebol onde nunca nos encontrámos mas cuja magia totalmente partilhamos, no Benfica comum, na selecção nacional, ou ainda nesse olhar sobre Figo que também é o mesmo e pelas mesmas razões.

Um caminho que continuou e cresceu, na Foz do Arelho, onde ele pesca e eu sonho. À beira desse Atlântico bravio, ora coberto de névoa, ora feito da luz de um azul sem fim, a Foz do Arelho é uma espécie de dependência que de certa forma também nos explica a ambos e eu sei que nos une por sobre tudo o resto. Por isso, tenho ido assim por aí fora, com o mesmo grau de, ousaria dizer, afinidade, e onde o passar do tempo sobre a vida deixou marca e deixou memória. Para convocação eis o que já não me parece pouco. Por isso, mesmo que a gente se veja pouco, ou que a política nos encene em lugares distintos, que importância?

Por isso quando há dias tocou o telefone e era por causa do livro que hoje aqui nos traz, entrei em campo disposta a jogar o meu melhor. E embora esta partida constitua desafio não de somenos, animei-me com o facto de se tratar de uma convocação para testemunhar em voz alta a festa do futebol. Festa estonteante, inebriante, galvanizante, palpitante - sim, sim, isso tudo! - e por isso a única capaz, como Manuel Alegre aqui nos lembra, de transformar por um dia o mundo "numa só pátria feita de muitas pátrias", como sucedeu ainda agora com o mundial. Festa tão incomparável que é capaz de unir por um mágico, milagroso momento, o que os credos, a política, a cor da pele, a vida, desunem todos os dias fora das quatro linhas. A única celebração oficiada por sentimentos permanentemente contraditórios mas cada um deles animado pelo dom de ser, à vez, o mais intenso : uma alegria sem medida, um nó na garganta, o mais incontrolado júbilo, um aperto no coração. Uma inexplicável gratidão à vida, um poço de angústia, a mais grata ilusão, a mais ácida desilusão. O gosto e o desgosto, o riso e a lágrima. E em pano de fundo, a entrega e a partilha com os vizinhos da bancada que, pelo voo divino de uma bola, se transformam em amigos do peito, por entre os estilhaços de alegria espalhados pelo estádio. E a superstição, não esqueçamos a superstição, essa, traduzida no compulsivo uso da mesma camisa ou do mesmo blusão até ao último minuto da esperança... À mistura com promessas absurdas, "se ele agora marcar eu prometo que..."

Ah quem não percebe isto, nada sabe da vida, e eu sei que Manuel Alegre sabe.

Sucede que tais estados de alma, que em mim podem não passar de um somatório de coloridos clichés, em Manuel Alegre transformam-se por obra e graça da inspiração e do sopro que sobre ela sopra, em pura poesia. Quem senão ele seria capaz de nos dizer que "gostava de escrever um golo como aquele poema que Nuno Gomes marcou."? De nos informar com inocência e felicidade que "finalmente ia entrar em campo e alinhar pela selecção ainda que só pela escrita"? De comparar o semblante de mármore de Ricardo, antes de defender o penalty absolutamente decisivo, com a Amália, quando ela nos cantava certos fados?

Poesia sim a servir tão belamente o toque da bola. Mas nem só dela vive este livro. Sabemos até que houve outros poetas também capazes do dom da graça face à coreografia dançada num relvado de futebol e é o próprio Manuel Alegre quem vai buscar Drummond de Andrade para lhe fazer companhia nestas crónicas. Não, o que aqui distingue também o nosso autor é que ele sabe que a festa não se esgota no golo da vitória e por isso aí estão também alguns lúcidos pensares sobre o meio do nosso futebol, vida malsã por vezes, triste meio muitas vezes, que ele vai analisando e enquadrando num Portugal que também pode ser reflexo desse estado de coisas.

Mas foi ainda mais o que retive e eu quero agora falar disso porque é isso que estabelece a diferença numa assinatura: é que a paixão de Manuel Alegre pelo futebol nunca lhe veda o dever de cidadania, nem lhe tolda a consciência cívica e o que ela pressupõe de responsabilidade e exemplo. E assim ei-lo a cumprimentar adversários, a dirimir conflitos, a consolar o outro lado. Mas ei-lo sobretudo a ter a pátria em conta. Neste livro que nos devolve inteira e intacta a saudade do Euro de 2004 e do Mundial deste ano, a pátria esteve sempre lá. E a bandeira e o cantar do hino. No seu lugar que é também o do coração do poeta. Sem vergonha mas sem falsos preconceitos, sem nacionalismos exacerbados, mas com orgulho. Talvez porque tenha afinal percebido melhor que outros, e muito melhor que os cultos do costume ou os pensadores oficiais que - cito: "o clube e a selecção são uma nova forma de utopia, tanto mais intensa quanto maior é a incerteza perante o futuro pessoal e a sensação que o país pesa cada vez menos nos destinos do mundo".

Permitam-me que termine ainda com a pátria. Para aplaudir outra magnifica radiografia, noutro passo deste livro. A propósito da genuína exaltação que envolveu Portugal nos dois campeonatos, diz-nos o autor: "Este estado de espírito independentemente do resultado final é em si mesmo uma vitória. Contra a rotina, o desalento,a crise, o desemprego e a insegurança, contra o vazio e ausência de causas, de sonho e de projectos. E até mesmo contra o fatalismo e a descrença dos portugueses em si próprios."

Como se vê e como vão todos poder partilhar com o autor, eis um livro que pegando na paixão pela bola e no amor à camisola, seja ela a do Benfica seja sobretudo ela a da selecção, é um pequeno tratado sobre esta coisa da alma, da identidade, de nós, afinal, portugueses, com um destino a cumprir. Porque já tivemos um e os antes de nós, foram capazes de o honrar.

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