28 novembro 2006

“Cultura e liberdade”

Intervenção de Manuel Alegre
Comemorações do centenário da associação “Aurora da Liberdade”
28.11.2006


1. É para mim uma grande honra ter sido convidado para comemorar os cem anos de uma associação cultural cuja história se confunde com a própria história da luta pela república, pela emancipação do conhecimento operário, pela cultura e pela liberdade. A “Aurora da Liberdade” integra-se na tradição associativista que é um dos elementos constitutivos da cultura democrática e do pensamento progressista português.

2. Talvez seja especialmente oportuno vir a Matosinhos falar de cultura e liberdade, quando aqui ao lado, no Porto, como se viu no caso do Rivoli, liberdade não anda a rimar com cultura e cultura não anda a rimar com liberdade. Oportuno ainda porque nesta era de globalização que devia ser uma fonte de enriquecimento e conhecimento, mas que foi apropriada pelos grupos financeiros mais poderosos, há hoje uma ditadura de imediato e do mediático, tudo se sabe ao mesmo tempo em toda a parte, mas tudo o que num dia acontece no outro esquece, a fugacidade é a marca deste tempo em que os factos parecem durar a sua própria efemeridade.
Cultura é outra coisa. Como disse alguém – “Numa Nação antiga como Portugal, mesmo quem nasce pobre nasce rico de uma História, de uma língua, de uma cultura”.

Cultura também não é só escrever livros, organizar concertos, seminários ou conferências; é um modo de olhar a vida. Cultura é um modo de viver e conviver. Uma relação do homem com o homem, do homem com o mundo, do homem com a natureza. Cultura, como costumava dizer Sophia de Melo Breyner, “é não poluir os rios das nossas terras, é ir à praia sem sujar a praia.” Cultura é preservar o património, promover o ordenamento do território, combater a desertificação do país e a degradação estética das cidades, desenvolver sem desfigurar e sem matar a alma dos sítios, dos lugares, das raízes. É por aí que começa a cultura: por uma forma de respeito. Por nós, pelos outros, pela terra, pela cidade, pelo mar.

3. Dizia Miguel Torga que a nossa língua é a única onde existe uma expressão que é, por excelência, a síntese do incivismo e da incultura: “o que é comum é de nenhum”. Cultura é ultrapassar esta anti-cultura, riscar esta frase da nossa língua. Aprender e ensinar que nada é tão nosso, tão de todos e tão de cada um como o que é comum.
O poeta inglês, Prémio Nobel de Literatura, T. S. Eliot, fala dos três sentidos da cultura: a cultura do indivíduo, que depende da cultura do grupo ou classe a que pertence; a cultura do grupo ou classe, que depende da cultura da sociedade; e a cultura da sociedade, que tem a marca da civilização em que está integrada. Por sua vez, o Conselho da Europa define “cultura” como “tudo o que permite ao indivíduo situar-se em relação ao mundo e também em relação ao seu património natal; tudo o que contribui para que o homem compreenda melhor a sua situação, tendo em vista transformá-la”.
Foi nesse sentido que Bento de Jesus Caraça falou de “cultura integral do indivíduo”, num ensaio notável, que permanece actual. Foi igualmente nesse sentido que André Malraux disse que “a cultura não é um ornamento, mas uma árdua conquista do homem para construir, em face do mundo real, um mundo que não pertença senão ao homem”. Ou, nas palavras de Adolf Loos, um dos pais do modernismo, “um equilíbrio entre o interior e o exterior do ser humano, que garanta um modo de pensar e actuar sensato”.

4. Seria errado ver a cultura como uma assimilação passiva e acrítica do que nos é transmitido. O homem é ele próprio e a sua circunstância. Mas, como escreveu um clássico, modificando a sua circunstância modifica-se a si mesmo. O que já Camões tinha dito de outro modo: “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. Ou: “em se mudando a vida / se mudam os gostos dela”.
Se a cultura não é um ornamento nem um luxo, também não é uma atitude passiva. Cultura é criação e acção. “Assumpção criadora do adquirido”, escreveu Eduardo Lourenço. Por isso António Sérgio falava da necessidade de uma reforma de mentalidade, como condição prévia das reformas estruturais de que o país necessitava. E Fernando Pessoa não se cansava de denunciar o “provincianismo mental português” como o maior e mais persistente dos nossos males.

5. Se o atavismo e o incivismo ameaçam a cultura, também a mundialização o faz, ao impor uma lógica de economia única, de sentido único e de pensamento único. O que traz consigo uma lógica de cultura e língua única. Sophia de Mello Breyner verberava “o capitalismo das palavras”.
É do que, afinal, de certo modo se trata: um capitalismo do pensamento, um capitalismo das palavras - um imperialismo da língua e da linguagem. E é preciso não esquecer que as grandes transformações que estão a ocorrer têm consequências culturais. Há uma mutação do próprio processo produtivo. Onde outrora havia grandes concentrações industriais e proletárias, assistimos agora à deslocalização, à fragmentação e à dispersão. Regiões que eram prósperas e tinham uma cultura própria estão hoje degradadas e progressivamente desertificadas. E há nas grandes cidades, como Paris, Nova Iorque, Los Angeles ou S. Paulo, bairros onde as escolas, os correios, as urgências médicas e de modo geral os serviços públicos deixaram de funcionar. Nem a polícia lá entra. São os novos guetos da nova crise de civilização. E os sinais da nova barbárie.

6. Bárbaros, para os gregos antigos, eram os que não falavam a mesma língua e não adoravam os mesmos deuses. Hoje, os novos bárbaros são aqueles que não conhecem senão a fria linguagem do cifrão. E que substituíram os antigos deuses pelos sacrossantos mercados, de cujas variações decorre o bem-estar de poucos e o sofrimento da maioria da humanidade. Os oráculos dos antigos deuses deram lugar aos novos oráculos: as cotações da bolsa, as ordens de compra e venda dos corretores. Das suas indicações depende a vida das empresas, das famílias, das economias nacionais. E também das nossas culturas, das nossas línguas, das nossas identidades.
Bárbaros eram também, na antiguidade, os que viviam extra-muros e que em hordas sucessivas procuravam tomar de assalto as cidades e as suas riquezas.
Hoje, os bárbaros estão dentro. A cidade é o palco da grande violência e das grandes exclusões. Quebrou-se o laço do homem com a cidade, com o trabalho, com os outros, consigo mesmo. O tempo está fragmentado. O tempo, a vida. Grande cidade, grande solidão. O homem está só. No automóvel, no autocarro, no avião, na rua. Só no trabalho. Só no regresso a casa. Só perante os seus. Só diante da televisão. O tempo desarticulou-se. O homem já não sabe ao certo de onde é, onde está, onde pode parar amanhã. Perdeu a raiz, está solto, está só. Na cidade, no transporte, no trabalho, em casa. Mas não há pior solidão do que a do homem mutilado da sua alma, o homem ausente de si mesmo, o homem que se vai despindo da sua substância para se diluir no grande mercado do mundo.

7. As pessoas não são átomos independentes. É a cultura que as liga entre si e que torna possível o desenvolvimento de cada indivíduo. É também pela cultura que se definem as relações das pessoas com o seu meio físico, com o planeta e com o cosmos e é através dela que se exprimem atitudes e crenças acerca de outras formas de vida. Neste sentido, todas as formas de desenvolvimento, incluindo o desenvolvimento humano, são determinadas pela cultura. Desenvolvimento e economia, como diz Amartya Sen, Prémio Nobel da Economia, são apenas aspectos ou elementos da cultura de um povo. A cultura não é um instrumento do progresso material: é o fim e o objectivo do próprio desenvolvimento, entendido no sentido do alargamento das possibilidades e opções de cada indivíduo e da existência humana no seu todo, sob todas as suas formas e em toda a sua plenitude.
Mas nenhuma cultura é estática ou imutável. O progresso cultural tem de ser incluído na própria noção de desenvolvimento individual e colectivo.

8. Os períodos de grande transformação da cultura ocidental foram sempre precedidos por grandes desordens sociais e económicas, mas também por fracturas de identidade manifestadas na própria língua. O síndroma de Babel traduz a impossibilidade de comunicar porque ninguém entende a fala de ninguém. Na literatura antiga o poeta adaptava a sua expressão poética “às condições em que ela poderia ser compreendida e, portanto, corresponder às necessidades do leitor.” Hoje vivemos num tempo marcado por duas tensões antagónicas: por um lado por a tendência para a uniformização, o pensamento único, a cultura única, e por outro, como vimos, a fragmentação, a desagregação e a perda de sentido.
Só muito recentemente compreendi o que Joyce quis dizer quando afirmou que a História se tinha tornado um pesadelo. É agora, com a perda de sentido e a ausência de uma perspectiva, que a História está a dar razão ao pessimismo de Joyce. Não porque tenha acabado. Mas porque deixámos de saber para onde vai. A tentativa de impor como língua única a língua do dinheiro e da força é uma forma de violência e uma manifestação de barbárie que está dentro das nossas cidades, das nossas casas, sobretudo das nossas televisões, das nossas rádios e também dos nossos computadores. Corrói as nossas culturas e as nossas identidades. Mata a diversidade e é um atentado contra a cultura.


9. Nesta hora em que, por um lado, renascem os nacionalismos e, por outro, se assiste a um avassalador processo de mundialização, é necessário que a Europa afirme a sua diferença, a sua memória, a sua identidade. E é necessário que dentro da Europa Portugal não perca a sua singularidade nem a sua alma. Não é só um problema político, é sobretudo um problema cultural. Como pergunta Fernando Pessoa: “Quem não tem a consciência certa das raízes profundas do seu ser, isto é, do povo a que pertence, de que coisa pode ter certeza ou noção?”
Por isso, temos de saber quem somos. Temos de o saber de maneira crítica e criadora, sem nunca descrer, como ensinava Torga, do “chão duro e ruim”. Fiéis às raízes, mas com a perspectiva histórica de transformar Portugal “num país mais livre, mais justo e mais fraterno”.
Durante a campanha eleitoral para as eleições presidenciais, não me cansei de repetir que, entre os países do mesmo peso demográfico, Portugal é o único que pode ser no mundo um actor global. Precisamente pela História, pela cultura e pelo nosso bem mais precioso – a grande língua portuguesa. Devemos estar na Europa com um olhar português, que é um olhar de abertura ao mundo e de valorização da comunidade dos povos de língua portuguesa.
Há duas maneiras de entender a identidade de um povo: a identidade-raízes e a identidade-projecto. Portugal tem uma fortíssima identidade histórico-cultural, mas está debilitado quanto à mobilização em torno de uma vontade colectiva. Temos que voltar a dizer com orgulho a palavra Pátria e dar-lhe, como tenho vindo a reafirmar, um sentido de modernidade e de futuro.

10. Nenhum país se identifica necessariamente com uma só cultura. A maior parte dos países são multiculturais, multinacionais e multiétnicos, com várias línguas, religiões e estilos de vida. É preciso respeitar as práticas culturais alheias. Mas o respeito implica mais do que tolerância. Pressupõe acreditar que a diversidade cultural é uma oportunidade e um enriquecimento recíproco. Num mundo em que a “purificação étnica”, o fanatismo religioso e os preconceitos raciais fazem parte do quotidiano, podemos interrogar-nos sobre como se pode substituir o ódio pelo respeito. O respeito não se impõe à força. Mas pode fazer-se da liberdade cultural um dos pilares do Estado.
A liberdade cultural é individual e colectiva. Implica o direito de cada um e cada grupo seguir ou adoptar os modos de vida que escolher, sem ameaças nem coacções, desde que respeite a comunidade. A liberdade cultural é também uma garantia da própria liberdade. E uma forma de encorajar a criatividade, a diversidade e a inovação, fundamentos do desenvolvimento humano.
Não há nem pode haver “uma” civilização mundial no sentido absoluto que por vezes se dá ao termo. A civilização implica a coexistência de culturas que ofereçam um máximo de diversidade. Como escreveu Claude Lévi-Strauss, “a civilização mundial não pode ser senão a coligação, à escala mundial, de culturas que preservam a sua originalidade”.
É esse um dos sentidos da aliança de civilizações que defendi no meu Contrato Presidencial. E Portugal está em condições históricas que lhe conferem um papel especial. Fomos durante séculos um cais de embarque, mas hoje somos também um porto de abrigo, onde se misturam povos e culturas. Passámos a ser um país de imigração e não apenas de emigração.
A nossa diversidade étnica, cultural, nacional e espiritual, é também uma oportunidade de desenvolvimento. Por isso venho defendendo uma sociedade inclusiva e cosmopolita, que saiba conjugar diversidade e cidadania, o mútuo reconhecimento da dignidade individual com a cooperação e a solidariedade, prevenindo a segmentação social e a discriminação racial.

11. A cultura representa hoje, no quadro europeu, uma percentagem já muito relevante do PIB. As chamadas indústrias culturais emergem como sectores fundamentais para a economia, para a inovação e para a afirmação da Europa no mundo. Um estudo da União Europeia a que se referiu recentemente o jornal Público mostra que a cultura contribui mais para a economia dos 25 do que os automóveis. Também por isso ela deve passar a ser uma prioridade. Cita-se o exemplo do museu Gugenheim de Bilbau que tirou a cidade da decadência. Segundo o mesmo estudo, o sector cultural e criativo contribuiu para 2,6 por cento do PIB da União, mais do que o imobiliário, os produtos alimentares ou as bebidas. O peso no emprego também é significativo: em 2004 empregou 5,8 milhões de pessoas, o que representa 3,1 por cento do total de empregos na Europa dos 25. Em Portugal, este sector contribuiu para 1,4% do PIB em 2003. Quais foram as principais conclusões do estudo para o nosso país? Segundo a autora da notícia, Joana Gorjão Henriques, “Portugal beneficia de uma característica linguística interessante – é um país pequeno mas a sua língua fala-se no Brasil e em África. E isso é uma oportunidade de exportação e troca que não existe noutros países pequenos.”

12. A originalidade das culturas está em perigo. Não apenas por causa dos riscos provenientes da guerra e dos regimes ditatoriais, que destroem património e interrompem brutalmente os ciclos da criação. Mas porque a autonomia e independência da produção e da circulação cultural em relação às necessidades da economia estão a ser subalternizadas pela lógica comercial.
Diz a vulgata neo-liberal que, em matéria de cultura, como aliás em todas as outras, o mercado só traz benefícios. Se os bens culturais são uma mercadoria como qualquer outra, se os mercados nos garantem a total liberdade de escolha, devíamos estar perante uma tal “explosão de escolhas” que todos os gostos pudessem ser satisfeitos. Na realidade o que tem sucedido é o contrário: a uniformização da oferta, tanto à escala nacional como internacional. A concorrência, em vez de diversificar, homogeneiza: a procura do maior público, como explica Pierre Bourdieu, tem conduzido a “produtos omnibus”, válidos para públicos de todos os meios e de todos os países, porque pouco diferenciados e diferenciadores. É o que acontece com as séries televisivas, a música comercial, alguns livros best-sellers ou filmes de sucesso produzidos directamente para o mercado mundial. A procura do maior lucro a curto prazo faz com que se instale aquilo a que Bourdieu chama a “censura pelo dinheiro”, que é a negação da cultura, naquilo que ela pressupõe de investimentos com retornos incertos e muitas vezes póstumos.

13. A escolha não é entre mundialização e defesa de culturas nacionais ou mesmo de nacionalismos culturais. A escolha é por um verdadeiro cosmopolitismo cultural como condição do desenvolvimento económico e do progresso social.
Temos de mudar o que faz mudar. E o que faz mudar é a formação das pessoas, no sentido geral da expressão: a educação, a formação profissional, a comunicação, a produção e divulgação científica, a inovação tecnológica e comportamental – numa palavra, a cultura. Aceder à informação e saber usá-la criticamente, aceder ao conhecimento e saber produzi-lo e aplicá-lo, adquirir e treinar competências de iniciativa, criatividade, comunicação, constituem finalidades em si mesmas, que não têm de estar subordinadas a supostas necessidades ou interesses do mercado de emprego ou, globalmente, do sistema económico. Pessoas mais educadas, mais cultas e melhor inseridas nos circuitos de conhecimento e comunicação são cidadãos mais capacitados, mais aptos, portanto, para fazer escolhas, definir projectos e participarem activamente na vida social.

14. Que pode a cultura contra a barbárie, contra a violência e a injustiça? Em primeiro lugar, resistir à teologia do mercado, à ditadura do mediático e do imediato, à diluição da diversidade de línguas e de culturas através da hegemonia linguística e cultural da potência dominante e do seu domínio dos grandes meios de comunicação e das novas tecnologias. Assim se impõem as modas, os comportamentos, as ideias. Há que resistir a esta ameaça de uma “cultura única”, contra a diversidade das culturas. Um modelo único, contra aquilo a que Torga chamava “a fisionomia inconfundível de cada povo”. É preciso denunciar este novo totalitarismo, este Gulag económico que provoca a exclusão de dois terços da humanidade e defender a cultura como condição e factor de liberdade. Liberdade livre, como queria Rimbaud.
Não pode haver liberdade sem memória. Um grande escritor moderno, Milan Kundera, disse que a luta pelo poder é sempre uma luta entre a memória e o esquecimento. De cada vez que se adopta uma estratégia do esquecimento, é porque se pretende fazer regredir a História. A estratégia contra a memória é sempre uma estratégia contra a cultura e contra a liberdade.

15. Cada povo tem a sua singularidade e de cada vez que ela diminui o mundo fica mais pobre. Portugal é um velho país cuja força principal sempre residiu na alma do seu povo. Um povo que não se fechou nas suas fronteiras e de certo modo ensinou o mundo a não ter medo do mar. Um povo que foi precursor do renascimento europeu e pioneiro do espírito universalista. Um povo assim não pode perder a confiança em si mesmo e no futuro do seu país. Precisa talvez de novas elites que estejam à altura da sua História e do seu destino. Precisa que o discurso volte a ser inspirador da acção e do risco. Precisa que a política seja de novo uma causa nobre e faça renascer o fulgor da alma portuguesa.
Acredito no poder da cidadania contra o desalento, contra o fatalismo, contra a ligeireza, o abuso, a diletância e o desinteresse. E acredito naquela “lusitana, antiga liberdade”, que o 25 de Abril nos restituiu e tem de voltar a ser uma força de esperança e renovação.

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