08 junho 2007

Governo negoceia com municípios um megapacote descentralizador

Jornal de Notícias
08.06.2007


A negociação do mega-pacote de descentralização de competências entre o Governo e a Associação Nacional dos Municípios Portugueses (ANMP) atingiu uma fase crucial. Estando praticamente acordadas as transferências - que abrangem as áreas da saúde, educação, ordenamento do território, ambiente e acção social - os autarcas iniciaram a discussão em torno do financiamento e do faseamento das transferências, num encontro, realizado na terça-feira, com o primeiro-ministro José Sócrates. O dossiê vai ser o tema forte do congresso da ANMP, a realizar nos próximos dias 15 e 16, em Ponta Delgada, nos Açores.

Envoltas no maior secretismo, as negociações são encaradas com prudência em ambos os lados da mesa. Numa ponta, a ANMP prefere submeter o dossiê à discussão dos seus associados, antes de avançar com a concretização de qualquer acordo. Isto porque o extenso leque de competências em causa pressupõe um elevado esforço financeiro das autarquias - obrigando, em muitos casos, a uma reorganização do município devido à inexistência de pessoal especializado. Na outra ponta, o Governo evita gerar polémica susceptível de introduzir ruído nas negociações de um pacote que visa abrir caminho a uma futura regionalização do país. A divulgação prévia do dossiê poderia também esvaziar de conteúdo o congresso ordinário da associação.

Alargar competências

A concretizar-se o pacote descentralizador em discussão com José Sócrates e com o secretário de Estado da Administração Local, Eduardo Cabrita, as autarquias ficarão responsáveis pelo parque escolar do seu concelho até ao 9.º ano. No fundo, trata-se de alargar à escolaridade obrigatória competências que o Poder Local já desempenha, desde 1998, ao nível do pré-primário e do ensino primário. É o caso do transporte de alunos, da contratação de pessoal não docente e da administração de actividades extra-curriculares.

Apesar das câmaras ficarem responsáveis por quase todas as competências referentes à gestão do parque escolar, permanecerá nas mãos do Ministério da Educação a contratação de professores e a definição do programa lectivo. As autarquias também nada terão a ver com a gestão das cantinas escolares, embora tenham de garantir diversas competências ao nível do apoio à família.

Por outro lado, terão que ser as câmaras a construir e assegurar a manutenção das escolas. Nesse sentido, a ANMP defende que o Estado passe para as mãos dos municípios a titularidade dos equipamentos, que devem ser entregues em bom estado de conservação e acompanhados por um suporte financeiro, a transferir anualmente, para reparações periódicas.

Sistema de financiamento

O pacote descentralizador pressupõe que sejam igualmente as câmaras a construir e manter centros de saúde e equipamentos sociais, como creches e centros de apoio à Terceira Idade. Ficará ainda nas mãos do Poder Local a atribuição de subsídios a instituições particulares de solidariedade social e a autorização de licenciamentos e construções em zonas de praias e áreas portuárias.

Com o dossiê em análise, as autarquias ficam responsáveis pela gestão do seu próprio território, uma exigência antiga e recorrente nos sucessivos congressos da ANMP. .

E o financiamento?

Recorrente também é a questão financeira. Há muito que os autarcas exigem ter nas suas mãos as competências que estão a ser discutidas. Desta feita, o Governo até estará disposto a ir mais além do que pedem. Falta saber se haverá acordo para uma questão essencial a ANMP não abre mão de que a transferência de competências seja acompanhada do respectivo pacote financeiro, como prevê a lei-quadro de transferência de atribuições e competências, de 1999.

A nova lei das Finanças Locais indicia a escassa disponibilidade do Estado para ser mãos largas na afectação de verbas aos municípios. Aliás, no que diz respeito às maiores autarquias do país, o diploma em vigor até impõe cortes financeiros. A ANMP defende que o mega-pacote descentralizador seja financiado por um reforço das transferências do Orçamento de Estado e pela celebração, pontual, de contratos-programa. Já o Governo está essencialmente preocupado em reduzir as despesas do Estado, para evitar indesejáveis derrapagens.

Cabrita confia em acordo e acalma autarcas socialistas

A notícia de que os autarcas socialistas rejeitam a proposta do Governo de obrigar à suspensão de autarcas acusados de crimes deixou o Governo preocupado. Ontem mesmo, o secretário de Estado do Poder Local, Eduardo Cabrita, garantiu ao JN que aceitará falar com os responsáveis socialistas pelas autarquias para lhes assegurar que os pressupostos da nova legislação se vão aplicar da mesma forma aos autarcas que se aplicam já a deputados e governantes. "Toda a discussão está a ser feita com base em pressupostos errados", garante, dizendo que a alteração "não é uma prioridade" e que será discutida com todos. Na terça-feira, Cabrita discutirá "sem problemas" esse assunto com os autarcas socialistas.

Quanto ao pacote descentralizador, poucas palavras "Os autarcas vão reunir e devemos esperar, mas vai tudo no bom sentido", diz Cabrita. D.D.

Autarcas não "calam" críticas

A negociação do pacote descentralizador tem colocado na mesma mesa o presidente da ANMP, Fernando Ruas, e o secretário de Estado da Administração Local, Eduardo Cabrita. Políticos que, nos últimos dois anos, têm protagonizado autênticos braços-de-ferro, sobretudo em relação à nova lei de financiamento das autarquias. Ainda recentemente, trocaram "mimos" quanto à proposta do Governo para obrigar os autarcas a suspender os seus mandatos, assim que sejam constituídos arguidos em processos relacionados com a gestão dos seus municípios. Tratando-se de uma ideia defendida por Cabrita na véspera do encontro da ANMP com José Sócrates, para discussão do pacote financeiro, prevê-se que as tréguas em nome de um reforço da descentralização sejam apenas momentâneas. Apesar dos aplausos às negociações em curso, a ANMP mantém críticas, por exemplo quanto à lei das Finanças Locais e, em particular quanto a medidas polémicas como o afastamento dos autarcas da gestão das áreas protegidas e o fim do peso decisivo na escolha dos presidentes das comissões de coordenação regional. Medidas encaradas como excessivamente centralizadoras e que configuram sinais de retrocesso na descentralização, pois retiram aos municípios competências que já lhes tinham sido atribuídas pelo Estado. É previsível que esses e outros temas sejam tratados no congresso dos próximos dias 15 e 16, espaço privilegiado para que se ouçam de novo os protestos dos homens do Poder Local. É o caso das alterações à lei do associativismo municipal que, no fundo, acabam com o "Pacote Relvas", concebido durante o Governo de Durão Barroso, ao fixar de novo a existência apenas das áreas metropolitanas do Porto e de Lisboa. A ANMP insiste na necessidade de se assegurar o livre associativismo das autarquias, princípio que caracterizava a reorganização administrativa que o Executivo liderado pelo actual presidente da Comissão Europeia concebeu. E reivindica o regresso à gestão das áreas protegida. Exigências como estas deverão constar, ao lado das propostas para a transferência de novas competências, do documento a aprovar no final do XVII congresso da ANMP.

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